Este Blog tem por função abrir reflexões e visibilizar o que se produz de arte contemporânea na Bahia. Sua estratégia principal é criar interlocuções entre artistas, críticos, curadores, poetas e pensadores da cultura de variados eixos de interesses. Este espaço será depositário de variadas formas de pensamentos que ajudem na compreensão dos processos contemporâneos que formam o perfil das ações culturais baianas e suas significações dentro do panorama brasileiro. Vauluizo Bezerra

sábado, 15 de janeiro de 2011

ALBINO RUBIM NOVO SECRETÁRO DA CULTURA - NÃO VI , NÃO GOSTEI Por Vauluizo Bezerra

Não vi e nem gostei. Vocês ficam na passividade dos votos de boa gestão: “que faça isso, que faça aquilo, faço votos de uma boa gestão, nunca ouvi falar no senhor, mas temos esperança que olhe para nós com atenção ”. Não vai fazer nada. Eminência parda, sem melanina a começar pelo nome. Quando digo que nós artistas plásticos, visuais, "cambiais", midiáticos, ignorantes, não somos articulados, vocês me acusam de apaniguado, e amigo dos "poderosos". Pois bem, defendo os "derrotados". Vocês souberam bater em quem trabalhou muito como Solange Farkas, que nos trouxe coisas que ninguém além dela, no atual panorama, jamais conseguiria trazer à Bahia - aliás, mais um absurdo para a lista de Otávio Mangabeira - vocês praticaram xenofobia com uma baiana de Feira de Santana, mas não tiveram a capacidade de se agrupar em torno de um nome que acreditassem. Vocês lidam com cores, mas são pálidos de idéias, equivocados e passivos politicamente, ficam em silencio diante de quem não conhece, porque não lutam em torno de quem conhecem e acreditam? Porque vocês não entendem nada, e não são mais meninos; aquele discurso de Caetano Veloso no festival da Record que entre tantas coisas diz: "SE VOCES ENTENDEM DE POLÍTICA QUANTO ENTENDEM DE ESTÉTICA, VOCES NÃO ESTÃO COM NADA, NÃO ESTÃO ENTENDENDO NADA"! Isso lhes cabe como um PARANGOLÉ DE OITICICA, que todos vestem como idéia, mas ignoram o que vestem. O Governador não é bobo, engessou a Pasta da Cultura pra não trombar com o lobby pesado dos arcaísmos baiano. Teve muito trabalho com a pasta da Cultura nas tentativas de acertos conceituais, dificultadas na incapacidade administrativa locada na tradição imperial da nossa burocracia. O que foi conquistado nestes quatro anos à custa de muito trabalho e desgaste emocional nos serve de grifo aos esforços vãos, entre erros e acertos empurrados para ralo do lodaçal nebuloso da política. Até um mês atrás, todos tinham “aquilo” roxo, e atiravam pedras indiscriminadamente em Solange Farkas, tudo em nome de um Salão anacrônico e esvaziado. Em realidade vocês defendiam a possibilidade de ganhar 20.000 contos de réis. Muitos dos artistas ficaram insatisfeitos quando Farkas transformou os 20.000 contos de Réis em estadias internacionais mediadas pelo reconhecimento global que ela goza, mas os artistas baianos não querem interlocuções com o mundo, à maneira americana, o Bahian Way Life prima pelo seu Umbigo de Ouro, não está interessado no mundo porque o mundo é aqui, o Axé corrobora, Amy Winehouse sai do Rio/São Paulo, passa por cima da Bahia e mostra os o bicos no Recife, nós ficamos a ver navios, na sede da Cultura baiana, no Porto da Barra, onde de longe avistamos sob o calor dos vapores marinhos a figura desfocada do Sr. Albino Rubim, nada pessoal, tudo cultural.
Vauluizo Bezerra

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

http://www.facebook.com/vauluizo#!/event.php?eid=186429681385109

Adriano de Aquino sem titulo (FMT 3)

Adriano de Aquino - HIPERBLOG

Sabe aquela revolução sonhada? Aquele desejo íntimo de virar o mundo de pernas pro ar? Aquela fúria contida de gritar pra toda gente sua visão de mundo como uma nova percepção, fundada numa metódica instalação do caos, que você tão bem sabe organizar. E aquela "idéia genial" que você teve na adolescência? Vai abandoná-la? Não faça isso! Reelabore a inspiração que tanto te mobilizou. Reveja os inúmeros recortes de antropologia cultural que te entusiasmaram na universidade e que resultou em muitos estudos para obras que um dia sonhou realizar.

O que você está esperando?
A hora é essa! Libere-se!Vai fundo!
As instituições públicas e privadas de arte e cultura evoluíram muito. Hoje, tudo é aceito e nada mais obstrui as ações estéticas de ponta. Nunca na historia da cultura, tirante, é claro, períodos totalitários, a arte, as instituições oficiais, a economia e o mercado resultaram em almagama tão consistente. Portanto, meu caro, não se faça de vitima da prosperidade. Ninguém escutará suas lamúrias! Mexa-se, corra atrás, procure amanhã mesmo um bom produtor, um divulgador, um agente de marketing. Sistematize seu projeto, se associe a um curador, invista nos contatos com os negociantes de arte, faça tudo que for possível, não importa o que, mas, faça alguma coisa.
Lembre-se: aprimore sua atuação na política acadêmica, produza teses, some títulos vetustos, inclua na apresentação de sua obra, citações fundamentais da arte. Cite, cite muitos nomes da vanguarda histórica, da escola de Frankfurt, de filósofos incompreendidos, mas, muito estimados, dos mitos e signos da rebeldia estética do modernismo, do pós modernismo e tudo mais que te pareça revolucionário, inquieto e transformador.
Se toque, tudo está ao alcance da mão. Ou melhor, ao alcance da oficialidade cultural, da consciência mediana e, claro, da economia.
A escalada das vanguardas contemporâneas ao topo do sistema de arte é um fato incontestável. Se inteire e participe desse avanço!
A predominância de grupos de artistas contemporâneos nas agendas curatoriais e institucionais é um marco da enternecedora conivência entre arte e sociedade. Essa maravilhosa circunstância decretou o fim dos confrontos entre liberdade criativa e preceitos coercivos de intermediação social. Não cace pêlo em ovo! Nem se abata com críticas rigorosas e bem fundamentadas contra sua obra, as despreze, pois, são apenas reações rancorosas dos conservadores.
Abandone qualquer intenção de buscar significado e beleza, esses quesitos são irrelevantes para um trabalho que objetiva expor com clareza, sem hipocrisia, a carne crua, as fezes e os berros da fauna oprimida e as entranhas da verdade e da vida.
Aproveite! O caminho está aberto, só te resta explorá-lo.
Observe atentamente os movimentos sociais de ponta, fundados nas premissas do multiculturalismo, da diversidade, da pluralidade, da multiplicidade, da heterogeneidade e variedade, na comunhão dos contrários, na intersecção de diferenças ou ainda, na tolerância mútua. Se as premissas supracitadas não podem ser aferidas na sua totalidade porque, de fato, não se concretizam horizontalmente no ambiente social como um todo, na arte, de um tempo para cá, se tornaram ocorrências sistemáticas.
Acorde, olhe em torno, veja o que seus colegas estão produzindo, siga o fluxo, elabore uma tática, copie e cole os fundamentos teóricos das lutas sociais de ponta e introjete, no fundo da sua alma, as teorias estéticas em voga. Salpique, aqui e ali, retalhos de antropologia cultural e fragmentos autobiográficos. Trace com precisão sua estratégia, arme sua rede de relacionamentos, porém, nunca se esqueça de demonstrar uma atitude contestadora. Sempre que tiver oportunidade critique com dureza todo sistema social, de dicas sobre os temas na pauta da grande imprensa, não faça silêncio, manifeste sempre uma opinião quando solicitado, seja sobre os avanços da física quântica ou educação fundamental. Aproveite qualquer oportunidade para afirmar, peremptoriamente, que sem educação o povo não terá acesso a uma cultura artística transformadora, aliás, a cultura alguma, nem mesmo a que ele próprio produz,vibra e se encanta.
A fúria, meu caro, desconhece limites!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Manifesto “Emputecido” - Octaviano Moniz Barreto

Triste Bahia

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

Gregório de Mattos
Jantei ontem às 6:30 PM. E você com isso? Sei, mas calma aí, comi salada e bife grelhado com verduras, estou acima do peso e além disso velho, careca e de óculos nem o diabo quer. Tudo isso para chegar a tempo na expo de Tunga e ter onde parar o carro. Tem seguro mas sou só um pouquinho paranóico. Parei na porta do prédio aonde ACM morava, pra fechar o corpo. Mãe Stella sempre me disse:a pior macumba é o olho alheio.Não precisava tanta antecipação, tinham vagas de sobra e uma voz me disse :-Octaviano (ela não conhece meu apelido) é exibição de arte contemporânea. Entrei com minha pontualidade britânica e estava vazio.7:00PM, o artista famosésimo mundo afora,e que considero junto a Cildo, Waltercio e Zé Resende os tops do Brasil de hoje. Mas o publico (ou seria tribo?) queria ver o realismo soviético, quando lotam certas galerias e museus locais. Olho com tristeza, pois sei que não é uma questão de horário mas de educação do olhar artístico, que deveria ter começado na escola. Na Inglaterra agora as crianças terão 10hs semanais para visitar museus, ateliers e terem aulas de arte. Mas nosso país é pobre. É mas nem os ricos, nem os novo-ricos apareceram. Eu era dos mais velhos no salão. 8 PM e só a garotada ligada as artes plásticas. Pior nem os artistas locais compareceram. Dá para citar os que foram. Preconceito? Sei lá, os artistas tendo uma oportunidade de verem uma criação ousada, fora dos padrões, motivo de inspiração preferiram ficar em casa vendo Passione, tenho certeza. Ou como era sexta feira, dia de branco enchendo a cara em algum bar e falando mal da expo. Sem ver. Por isso a Bahia não teve ninguém na Bienal de SP, no Premio PIPA , os artistas não se interessam, não tem tesão pela arte mas sim por vender, ganhar prêmios, se auto promover........ querem exclusividade de mercado, só pode exibir se for baiano, então perde-se o intercambio,a troca de informações , a oportunidade de tirar algum proveito para o próprio trabalho. Isso me irritou, mas conheço o ego dos artistas e seu modus operandi, do qual já fiz parte. Similar aos surfistas “black-trunk” do Hawai, a praia é mnha e só surfa minha galera. Perderam, pois Tunga é super simples, fala com todo mundo, nem parece o star que ele é e você artista, tendo orgasmos com a novela da Globo .Depois não reclame que seu trabalho não sai do quintal. É dando que se recebe. Sobre a ausência da pseudo-burguesia baiana nem vou perder meu tempo, eles ainda estão no pré-impressionismo, esperando Van Gogh cortar a orelha para despertarem. São ricos em dinheiro, mas pobres ignorantes de alma. Se fosse uma exposição de bolsas Hermes ou scarpins Loboutin, a casa estaria lotada. Para os homens sugiro uma mostra de relógios Rolex. Falsificados. Sr.Secretario de Cultura, vamos dar a Cesar o que é de Cesar: a baianada é cafona até cair, eles querem arte acadêmica, nem preciso citar nomes, mas tem que ser bem colorido e decorativo. Pena não poder colocar o vídeo Triste Bahia (com poesia de Gregório de Matos) do Youtube, no texto.Fica para o futuro.Então já terei morrido e tenho duvidas,será que a Bahia vai continuar acadêmica? Estará a explicação nos gens alelos baianos? Desculpe Tunga.A expo estava soberba.Obrigado por ter vindo.

Octaviano Moniz Barreto Artista Plástico e Comentarista

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Faz-se necessário dizer, diante de tantas incompreensões de leigos sobre o meu trabalho, que este meu texto é, exclusivamente, para esclarecer esta fase de minha obra. Desejo prestar a minha homenagem aos que, na cidade do Salvador, nele acreditou. A eles dedico este texto.

Será necessário um ligeiro retrospecto. Na década de trinta dominavam em Salvador os artistas acadêmicos, na maioria, professores da Escola de Belas Artes. Alguns, os mais conhecidos e importantes na época, foram estudar em Paris e na Itália. No retorno, diziam-se impressionistas, que foi uma linguagem revolucionária surgida na segunda metade do século XIX. Nos anos trinta do século XX, já existiam os Nabis, os Fauves, o Abstracionismo, o Cubismo, o Expressionismo, o Futurismo, o movimento Dada, o Surrealismo, para somente citar algumas das novas linguagens que não foram por eles absorvidas.

Em fevereiro de 1922, acontece em São Paulo a Semana da Arte Moderna, movimento liderado por Oswald de Andrade, levado a cena no Teatro Municipal de São Paulo, onde a cada dia um artista apresentava sua tendência de cultura e arte. O movimento nasceu exclusivamente para exaltar culturalmente a cidade de São Paulo, apesar de participarem deles artistas nordestinos e cariocas, como Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti. Um pouco mais tarde em Recife, Cícero Dias assume o Surrealismo. Porém, a meu ver, este movimento assume uma característica muito importante para a arte e a cultura brasileira, devido à abrangência que tomou em todo o país.

O movimento começou e foi tomando corpo devido a que vários de seus artistas participantes estudavam na Europa ou muito para lá viajavam. Isso facilitou verificarem o grande movimento renovador das artes no princípio do século XX e absorverem as várias linguagens. O mais importante é que a temática usada na absorção das linguagens era transfigurada e tinha forte conotação nacionalista. Não foram simples imitadores.

O movimento começou a decair quando no Brasil começou a penetrar a arte abstrata. Mas em compensação, e ainda na década de 20, começaram a surgir os literatos nordestinos e logo após os pintores tentando obter uma identidade nacional para a nossa arte. Em 1932, volta de Paris o pintor baiano José Tertuliano Guimarães. Ele, apesar de não absorver nenhuma das novas linguagens contemporâneas da época, conseguiu compreender a pintura de Cézanne que muito o influenciou e, com isso, foi o primeiro a dar um passo adiante do que aqui era chamado de impressionismo. José Guimarães também inovou realizando pela primeira vez trabalhos recriados sobre a cultura afro-baiana, que ilustraram o número 4 da Revista SEIVA, de maio de 1939, todo ele dedicado ao negro. Esta diferença, e o rompimento com os procedimentos anteriores, lhe conferem a maior importância nas artes plásticas baianas. Assim ele se torna o primeiro artista a começar a diminuir a defasagem entre a arte anacrônica praticada na Bahia e as novas linguagens.

O modernismo começou a surgir em Salvador no meio da década de quarenta com a primeira geração de artistas plásticos modernos da Bahia. Portanto vinte anos depois da Semana de Arte Moderna de 22, que também começou com vinte anos de atraso. Enquanto tudo isso acontecia, pouco ou nada sabíamos do que acontecia na arte contemporânea da época. Dai à importância dos meios de comunicação, principalmente os jornais e revistas que começavam a publicar reportagens, textos de críticos de arte, e a divulgarem as novas linguagens. Atualmente, e infelizmente, na maioria dos jornais brasileiros, foram eliminadas as colunas de crítica de arte.

Na década de cinqüenta, a Escola de Belas Artes, fundada em 1877, seguia os padrões da Escola de Belas Artes de Paris. O que se ensinava a partir do modelo clássico eram as técnicas e as cadeiras teóricas de arte. Os professores falavam que a escola não fazia artistas. O que eu acho inteiramente certo. Somente quem tem talento, quem recebe o carisma dado pelo Divino Espírito Santo, consegue, com o aprendizado das técnicas, expressar o que vai na sua mente e em sua alma – naturalmente com muito estudo teórico e atualização nas linguagens contemporâneas. Com a posse destes elementos, pode-se conseguir ser um artista. Agora, o reconhecimento de um bom artista atualizado é trabalho da crítica de arte.

O contato com estudantes de arte de outros estados, em congressos e no que naquele tempo se chamava “embaixadas”, o começo da introdução da arte moderna na cidade, realizada por artistas de fora da escola, a entrada da EBA na Universidade Federal da Bahia, a realização de concursos para professores foram, entre outros, fatores que contribuíram para a introdução, não tranqüila, da arte moderna na escola. Pessoalmente, além destes fatores, o que me influenciou a seguir a temática da arte e cultura popular do Nordeste transfigurada e adotando uma linguagem contemporânea foi a cadeira de Estudos Brasileiros, a leitura sobre os movimentos messiânicos e de autores brasileiros com esta temática.

Formei-me em Pintura pela nossa Escola de Belas Artes em 1957, quando começava o surgimento da segunda geração de artistas plásticos modernos da Bahia. Apesar da ruptura da primeira, a posterior encontrou ainda muitas dificuldades. No ano anterior já havia conhecido, e participava de atividades artísticas e culturais juntamente com Alberico Motta, Ângelo Roberto Mascarenhas de Andrade, Carlos Anísio Melhor, Florisvaldo Mattos, Fernando da Rocha Peres, Fernando Rocha, Frederico José de Souza Castro, Glauber de Andrade Rocha, José Julio de Calasans Neto, José Turisco, José da Silva Dultra, João Carlos Teixeira Gomes, João Eurico Matta, Julia Conceição Fonseca Santos, Lina Gadelha, Nemessio Salles e Paulo Gil de Andrade Soares, componentes da hoje chamada “Geração MAPA”.

Estes jovens de então deram uma grande contribuição para a implantação da arte moderna na Bahia em todas as linguagens artísticas, e os remanescentes continuam atualizados e produzindo até hoje. Eles tiveram a fortuna de participar do maior e mais fecundo período cultural da Bahia durante o reitorado do Dr. Edgard Santos.

Como disse, desde 1957, influenciado por uma cadeira, hoje extinta, chamada “Estudos Brasileiros”, comecei a elaborar o conteúdo da minha pintura. Esta cadeira dava uma visão geral do Brasil, não com profundidade, mas abrangendo todos os campos de nossa cultura. O catedrático era o psiquiatra e poeta Hélio Simões. Ele dava a aula inicial e poucas outras, mas durante todo o ano letivo as aulas eram proferidas por Carlos Eduardo da Rocha e Cid Teixeira. Pertencente a esta cadeira e em anexo, havia um pequeno museu onde constavam alguns objetos de artesanato do Nordeste, de antropologia, de etnologia, fotografias, santos barroco, urnas funerárias indígenas, arcos, flechas, objetos em fibra, objetos de cerâmica e uma coleção de ex-votos. Daí surgiu a minha paixão.

Só para dar um exemplo da riqueza do Nordeste, o Brasil possui cinco regiões geográficas com três trajes típicos nacionais, o Vaqueiro, a Baiana e o Gaúcho. Afortunadamente a Bahia possui dois deles.

Pequeno museu da cadeira Estudos Brasileiros – Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.

Talvez possa falar um pouco e, resumidamente, do reitorado do Dr. Edgard Santos, simplesmente por tê-lo vivido. Foi certamente o grande momento da arte e da cultura na Bahia. Foi um período de grande efervescência cultural e uma referência da Bahia na cultura brasileira e também internacional. Tenho que avisar não ser um saudosista, caso contrário não estaria fazendo arte digital, produzindo INFORGRAVURAS. Porém tenho saudades. Existe uma grande diferença em ter saudades e em ser saudosista. Mas para se ter uma compreensão do que ocorreu, primeiramente acho que devo falar da infra-estrutura que foi implantada no âmbito da Universidade Federal da Bahia e também do Governo do Estado da Bahia, com o Teatro Castro Alves e o Museu de Arte Moderna.

O projeto inicial do teatro foi do arquiteto Alcides da Rocha Miranda, um dos maiores arquitetos brasileiros, e compunha-se de dois blocos e um “foyer”. Um dos blocos destinava-se ao ensino do teatro e o outro a representações teatrais. O argumento em favor da mudança para um novo projeto foi que o primeiro era muito complexo e a sua construção iria demorar muito. O atual é de autoria do arquiteto José Bina Fonyat e do engenheiro Umberto Lemos Lopes, que aproveitaram somente o “foyer” que já estava construído.

Vítima de um incêndio no fim do governo Antônio Balbino, o pagamento do seguro foi suficiente apenas para reconstrução da estrutura, ficando assim o TCA carente de equipamentos para o seu funcionamento.

Neste espaço começou a funcionar provisoriamente, no Governo Juracy Magalhães, o Museu de Arte Moderna da Bahia, que deveria possuir posteriormente uma sede própria. Após a conclusão da Avenida de Contorno e a restauração do Solar do Unhão, o MAM se muda para lá, também provisoriamente, porque naquele espaço deveria ser implantado o Museu de Arte Popular.

O MAM prestou um grande serviço às artes plásticas baianas. Começou mostrando os artistas abstratos, completamente desconhecidos em Salvador. Depois realizou exposições de grandes artistas nacionais e internacionais, exposições didáticas, a apresentação dos grandes artistas que haviam sido expostos na Bienal de São Paulo e um grande programa votado para os jovens artistas. No seu amplo palco foi construído uma arquibancada e levadas a cena pelos alunos da Escola de Teatro peças memoráveis como “A ópera dos três tostões” de Bertolt Brecht com música de Kurt Weill, tocada na época por um conjunto dos Seminários de Música, e “Calígula” de Albert Camus.

Foram inauguradas as Escolas de Teatro, Dança e os Seminários de Música, que mais tarde se transformariam na Escola de Música, e houve a inclusão da Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia.

O fantástico era a integração entre estas escolas, que sempre realizavam projetos em conjunto. Formou-se uma excelente orquestra onde foram incluídos músicos estrangeiros, e os concertos eram na Reitoria. Foi apresentado ao público o que havia de mais atual na música internacional, como aulas teóricas sobre o Dodecafonismo e concertos dodecafônicos, principalmente dos compositores Theodor Adorno e Arnold Schömberg e concertos clássicos. Ao mesmo tempo eram dadas aulas para jovens instrumentistas que afluíam de todo o país. A orquestra da Universidade Federal da Bahia apresentou pela primeira vez, e completa, “Carmina Burana”, canções e poemas medievais musicados por Carl Orff. E também apresentou pela primeira vez mundialmente o “Octeto de Metais” de Paul Himdemith.

A Escola de Teatro recebeu inúmeros professores e artistas que trabalhavam ao lado dos jovens atores para lhes transmitir a experiência. Na escola, além da leitura de peças havia todas as cadeiras inerentes à formação profissional. Lecionou uma professora, cantora lírica, que ensinava a impostar a voz – o ator em cena projetava a voz, não gritava. Além de grandes encenações de peças clássicas e fundamentais para o ensino, dava-se muita importância aos autores brasileiros que iniciaram o nosso teatro. A Escola de Teatro obteve por doação, se não me engano da Ford Foundation, o primeiro ciclorama do Brasil. Um grande avanço na época devido a sua nova tecnologia.

Por sua vez a Escola de Dança mostrou a dança moderna, também por nós desconhecida naquela época. Todos esses movimentos eram para a formação de jovens artistas e a nossa geração, hoje chamada de “Geração MAPA”, foi muito prestigiada em seus projetos e praticamente todos começaram aí sua vida profissional em suas respectivas áreas. Não falei dos nomes de nenhum artista ou professor, para evitar os costumeiros esquecimentos e procurei resumir ao que pude.

Durante o período escolar, já participava de salões e pintava ao ar livre. No final de meu curso, fui o primeiro aluno a fazer uma exposição individual na Escola de Belas Artes, mostrando todos os meus trabalhos escolares e os realizados fora da Escola. No ano seguinte expus na Galeria Domus. Em 1959, outra exposição na Pequena Galeria da Biblioteca Pública, e, em 1960, no Diretório Acadêmico da EBA. Neste mesmo ano, Mario Cravo, eu e Calasans Neto fizemos uma exposição na Galeria Macunaíma, no Rio. Então não parei mais. Graças a Deus, com saúde, aos 82 anos, continuo trabalho diariamente.



SOBRE CULTURA E ARTE POPULAR BRASILEIRA

Se queres ser universal, comece por pintar a sua aldeia.

Leão Tolstoi (1828-1910)

É muito importante a preservação das manifestações espontâneas da nossa cultura popular. Principalmente as do Nordeste, de uma riqueza imensa. Todas as manifestações populares do povo do Nordeste, como artesanato, arte e cultura, messianismo, religiosidade, as represento através da apropriação do ex-voto, que, no meu trabalho, é um signo/símbolo para expressar toda esta riqueza, todo o meu pensamento e todo o meu sentimento. Desde o início da minha carreira que penso assim. O surgimento da obra de arte na minha pintura é decorrente da transfiguração de uma temática abrangente da cultura e arte do Nordeste brasileiro, associada a uma linguagem contemporânea internacional vigente na época. A forma muda conforme aparecem novas linguagens, mas o conteúdo permanece o mesmo. É uma busca incessante por uma identidade cultural brasileira. Isto acontece até hoje, sempre coerente com o meu pensamento, sem fazer qualquer tipo de concessão.

As nações desenvolvidas que possuem uma grande tradição de cultura e arte, a começar pelos clássicos Gregos e Romanos, sempre mudaram, ao correr dos tempos, a forma de suas criações artísticas. Surge, assim, o que hoje chamamos de linguagens contemporâneas. Estas linguagens, que surgiram não importa o país de origem, levavam muito tempo para serem adotadas internacionalmente.

Hoje, devido aos meios de comunicação cada vez mais eficientes, elas chegam com muita rapidez, são adotadas e se extinguem também muito depressa, dando lugar ao aparecimento de outras novas. No mundo globalizado, cada nação valoriza sua cultura, sua arte popular e sua arte erudita, sem haver, entretanto, nenhuma supremacia entre elas. Mas o que é representativo no mundo da arte internacional é a arte erudita. No meu trabalho, dentro da fase antropomórfica, usei a linguagem pop acoplando ex-votos originais aos suportes das pinturas. Alguns destes trabalhos fizeram parte da Representação Brasileira à 21ª Bienal Internacional de São Paulo. Anteriormente já havia participado mais duas vezes desta importante Bienal.
No Brasil, todas as linguagens contemporâneas estão em evidência, com nossos artistas expondo inclusive no exterior. Valorizar uma em detrimento da outra, seja por qualquer motivo, inclusive político, é um equívoco. Não respeitar e excluir os artistas que no passado remoto ou recente deram ou continuam dando uma grande contribuição à arte e cultura local, com certeza, é uma atitude intolerável de censura. É uma atitude inconcebível numa democracia. Entretanto é passageira, porque ela não destrói a obra, apenas a ignora. Por isso sempre digo e repito: o importante em qualquer artista é a sua obra. Se a obra foi elaborada dentro de uma linguagem contemporânea da época, com certeza ela já está na História, e permanecerá, mesmo que seja de um artista erudito, popular ou mesmo um artesão. Um bom exemplo é o pintor “naif” ou “primitivo” francês Henri Rousseau, chamado Le Doanier, por ser inspetor de alfândega. Podemos citar alguns pintores primitivos brasileiros que já estão na nossa história, como Heitor dos Prazeres, José Antonio da Silva, Cardoso e Silva, Silvia Leon Chalreo, Aurelino, João Alves, Manezinho Araújo e muitos outros. O que prevalece nos artistas eruditos, e nos primitivos, é que eles possuem uma obra. O que é mais importante em um artista é a sua obra. Esta é o que fica.

Foram os ditadores nazistas, fascistas e comunistas que tentaram destruir a arte contemporânea da época, no período em que exerciam o poder. Hitler mandou fechar a Bauhaus, a grande escola de design, e chamou a arte da época de “arte degenerada”. Ou na época de Stalin que, igualmente aos outros, decretou a arte realista como a oficial. Os artistas deviam exaltar o partido e seus governantes. Com isso a grande maioria teve de fugir para a França ou Estados Unidos, onde produziram suas obras, que hoje estão em diversos museus do mundo.

No período ditatorial brasileiro, sucedeu a mesma coisa. Muitos artistas, de várias linguagens, sofreram terríveis perseguições. Porém aqui não é o caso de detalhar, mas somente dizer que, hoje, muitos estão em evidencia no cenário da arte e da cultura no Brasil. Sendo que alguns são artistas eruditos que usaram a temática popular.

Em nosso país foram os literatos os primeiros a trabalhar a identidade cultural brasileira. Eles começaram pela transfiguração da cultura popular do Nordeste. José Américo de Almeida foi o primeiro com “A Bagaceira”, de 1928. Depois vieram muitos, entre eles, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Mario Sette, Ascenso Ferreira, Ariano Suassuna, Gilberto Freire, entre outros. Gilberto Freire, no livro “Nordeste”, usa pela primeira vez o termo ECOLOGIA e, com chamada de página, explica o seu significado. Ele denunciava o escoamento na natureza pelas usinas de açúcar, do vinhoto, que é um elemento venenoso. No meu trabalho e no de muitos artistas baianos, a preocupação é a mesma dos literatos. A minha geração, hoje chamada de “Geração MAPA”, tem, sobretudo, uma influência muito grande dos escritos de Mario de Andrade.

De Ildásio Tavares, em sua coluna na Tribuna da Bahia, em 27 de janeiro de 2007, transcrevo um pequeno trecho:

Estas duas culturas, que redundam afinal em se encontrar sob o conceito de cultura geral, devem conviver em pé de igualdade e se uma supera de muito a outra, deve-se buscar o equilíbrio. Principalmente porque uma vive da outra, uma se nutre da outra numa constante viagem dialética. A sexta sinfonia de Beethoven, chamada a Pastoral, nasce de uma canção popular de ninar. Villa-Lobos deu lições de brasilidade compondo em cima de nosso folclore, processo que Lindembergue Cardoso levou ao sublime.

***

Não vamos citar a música popular e seus artistas por motivos óbvios. Citaremos apenas alguns músicos brasileiros eruditos que em sua obra transfiguram a arte e a cultura popular. Primeiramente Silvio Deolindo Froes, Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Guerra Peixe, para ficar somente nestes.

Dos artistas que tentam a transfiguração da arte e cultura popular em arte erudita, citarei apenas os pintores baianos Rubens Valentim, Chico Liberato, Calasans Neto, Juraci Dorea, César Romero, Murilo Ribeiro, Washington Sales, Chico Mazzoni, Sante Scaldaferri, Caribe, Jenner Augusto e o cearense que foi radicado em São Paulo Aldemir Martins e o pernambucano Francisco Brenand.

As novas tendências da arte internacionais sempre surgiram paralelamente em todas as linguagens, e no cinema, além disso, são adicionadas as novas tecnologias.



No cinema Glauber Rocha e Paulo Gil de Andrade Soares, Roberto Pires, Rex Schindler, Braga Neto, Luis Paulino dos Santos, Trigueirinho Neto, Oscar Santana, Guido Araújo, Tuna Espinheira, Agnaldo Azevedo, José Telles, Timo Andrade, Roberto Gaguinho, Lázaro Torres, Kabá Gaudenzi, José Walter Lima, André Luiz de Oliveira, Álvaro Guimarães, Zé Humberto Dias, Olney São Paulo, Conceição e Orlando Senna, Geraldo Sarno, Fernando Coni Campos, José Frazão , Pola Ribeiro, Fernando Belens, Edgard Navarro, Jorge Felippi, Joel de Almeida, Robson Roberto, Ailton Sampaio, Milton Gaúcho, Cícero Bathomarco, Carlos Modesto, Virgilio Carvalho,Marcus Sergipe, Alba e Chico Liberato, Wandeoursen, Lucio Mendes, Roque Araújo, Alonso Rodrigues, Edyala Iglesias, Roberto Duarte, Monica Simões, Solange Lima, Adler Paz, Lula Oliveira, Kiko Povoas, José Araripe.

Se faltar alguém, me desculpem. Velho esquece das coisas.

***

Nunca coordenei campanha angariando trabalhos de artistas para serem leiloados em favor de campanhas governamentais visando cargos futuros. Nunca fui da “copa e cozinha” de nenhum governador, nunca “puxei o saco” de nenhum político poderoso na época, nem de empresas e empresários, bancos e banqueiros, para aparecer ou vender meus trabalhos. Nunca fui pedir a ninguém para comprar meus quadros e nem para fazer painéis ou murais. Os que realizei foram sempre a convite de pessoas sensíveis e que conheciam o valor do meu trabalho. Acho que o artista deve ter e manter a dignidade.

No princípio de minha carreira, logo após me formar, para não corromper minha pintura fazendo concessões, elaborei os projetos, implantei e dirigi Centros Artesanais. No SESI – Serviço Social da Indústria – foram dois, um no Largo do Papagaio, na Cidade Baixa, em um casarão do século XIX, e outro no bairro do Retiro, em prédio construído especialmente para as atividades sociais.

Outro no SESC – Serviço Social do Comércio, no Bairro de Nazaré, e, por último, no IPAC Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia, localizado no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, no início de sua instalação, convidado pelo antropólogo Vivaldo Costa Lima. Graças ao seu apoio consegui contratar os professores de artesanato da Escola Parque, dirigidos pelo professor de Artesanato, Arquimedes Gonçalves. Ali, além da parte de técnicas, fizemos um excelente trabalho social com a população local, principalmente com as crianças.

Consegui meu lugar na história da arte da Bahia às custas exclusivamente de meu trabalho. Sempre participava de Salões em diversos estados. A princípio cortado. Com o tempo, participava e ganhava prêmios. Assim a crítica nacional tomou conhecimento de meu trabalho e fiquei conhecido no país. Depois apareceram os primeiros convites para exposições em galerias do país. Nunca “folclorizei”, nunca fiz “xerox” de minha própria obra e nunca repeti ad infinitum meu trabalho. Nunca fiz trabalhos de fácil leitura com o fito comercial. Nunca fiz trabalhos anedóticos. Não trabalho na “Estética da Norma”.

No processo evolutivo da arte, passou-se, além do belo, a tratar de outros temas mais complexos, que na sua forma podiam ser chamados de feios na antiga visão. Mas a arte, bela ou feia, deve transmitir ao espectador uma emoção. Todo artista expressa, por qualquer meio ou linguagem, o que se passa em sua mente, na sua alma. Em sua criação, ele materializa a sua visão de mundo. Um artista é um visionário, ele vai além do cotidiano, ele prevê o futuro.
FASE ANTROPOMÓRFICA

Nos princípios de 1980, houve uma mudança brusca na forma em minha pintura. Continuando com o mesmo conteúdo, adotei o NEO-EXPRESSIONISMO que é uma visão mais contemporânea do expressionismo alemão da década de 30. Adotei também a TRANSVANGUARDA, linguagem também mais contemporânea do expressionismo. Ela foi liderada pelo crítico italiano Achille Bonito Oliva e seguida, na época, por importantes artistas. Entretanto, os nomes significam mais ou menos a mesma coisa. Dentro da TRANSVANGUARDA adotei a POP ART. Neste mesmo rumo surgiram várias outras, que chamaria de subfases, sem serem um compartimento estanque e com características de “Pop”, “Monocromáticas”, “Linhas marcadas”, “Sem linhas”, “Coloridas” e o trabalho apresentado nas duas exposições “As fraquezas do caráter humano” e “Ainda as fraquezas do caráter humano” . Porém tudo isso se enquadra numa fase geral a que chamo ANTROPOMÓRFICA, depois que coloquei, nas figuras, um rabicho de porco.

Naquela época, um repórter argentino, que não me lembro o nome e nem em que meio de comunicação trabalhava, me solicitou uma visita/entrevista dizendo que estava muito interessado na transfiguração da arte e cultura popular do Nordeste brasileiro. Quando ele chegou a minha casa e viu os novos trabalhos, se espantou, não sabia o que havia acontecido. Aí eu expliquei a ele: “Antes eram ex-votos com cara de gente, agora são gente com cara de ex-votos”.

Não é gorda, gordinha, gorduchinha, fofinha ou fortinha. É uma arte muito séria e forte, possuindo um conteúdo profundo. São os ex-votos assumindo a condição humana para expressarem suas dores, angústias, invejas, ódios, ressentimentos, ciúmes, paixões, amores, mentiras, poder, alegria, medo, pavor, terror, corrupção de todo tipo, violência, assassinatos, enfim, tudo inerente ao ser humano. É a verificação plástica/visual do bem e o mal. Como a anterior, a forma desta fase é que a distingue de outros pintores. É a minha “escrita” pessoal, porém o conteúdo não é um fato inédito. Ele remonta a uns dois mil anos.

MARCOS, 8:

21. Porque de dentro dos corações dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios,

22. a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura.

23.Ora, todos estes vêm de dentro e contaminam o homem.

Quem tiver capacidade, e se der ao trabalho de estudar toda a minha obra desde o início, vai verificar o seu conteúdo, social, filosófico, político não partidário, religioso, messiânico, irônico e outras “cositas mas”. A minha preocupação na construção do meu trabalho, desde o início e até hoje, é o HOMEM.

Às vezes, pessoas falando a respeito de meu trabalho, ou mesmo comigo, dizem claramente ou insinuam que minha pintura é influenciada pela de Fernando Botero ou, pejorativamente, cópia. Às vezes dá até para distinguir quando é maldade ou ignorância.

Influência no jovem artista em começo de carreira é natural, no entanto, quando o artista copia outro, o aspecto é diferente, e os profissionais sabem muito bem distinguir os dois processos.

Em primeiro lugar, quando comecei esta fase eu não conhecia a obra de Botero. Comecei a pintar primeiramente figuras mais avolumadas, e, posteriormente, coloquei um rabicho de porco.

As figuras de Botero, por acaso têm rabicho de porco? As minhas, por acaso estão vestidas?

Quem realmente conhece a obra de Botero, sabe perfeitamente que a sua forma, a sua “escrita”, nada tem nada a ver com a minha pintura. Nem com as figuras dos seres antropomórficos nela existente. E nem com a minha fatura que em nada é igual à dele.
Este ex-voto foi recolhido em São Francisco do Canindé (CE). Com ele, com a sua forma, com a minha “escrita”, com a colocação do rabicho de porco, unindo o meu conteúdo à linguagem contemporânea da época é que começou realmente a fase antropomórfica, descrita acima com detalhes.

Entretanto, se alguém, depois de ler este texto e ver as reproduções acima continuar comparando minhas pinturas com a de Botero, não tenho mais nada a dizer.



***

A temática é livre. Se colocarem um modelo masculino ou feminino, gordo ou magro, diante de dez pintores ou de dez fotógrafos, ao final teremos dez pinturas e dez fotos, cada uma diferente da outra. Depende principalmente do uso da técnica e do olhar do artista. Entretanto, quando o artista coloca as figuras de Botero diante de seus olhos e faz uma pintura intencionalmente parecida, aí é cópia.

Pablo Picasso, dizia: “A pintura não foi feita para decorar apartamentos. Ela é um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo”.

Naturalmente, para a realização de uma obra de arte, além da parte criativa, necessariamente têm de ser levados em conta muitos fatores técnicos e teóricos e, sobretudo, ser usada uma linguagem contemporânea. Aliado a isso tudo, você necessita ter um discurso, um conteúdo e a capacidade de criar uma fatura, um modo próprio que o distingue dos outros pintores. Resolvendo este problema, mesmo sem ver a assinatura, sabe-se quem foi o artista que pintou o quadro.

O artista é como outra pessoa qualquer, cada um com um carisma, recebido pelo Espírito Santo. O verdadeiro artista é um ser de uma complexidade muito grande, o que leva pessoas não habilitadas, a avaliações completamente equivocadas sobre o seu trabalho. Principalmente quando ele se expressa através de qualquer linguagem contemporânea, mostrando em seu conteúdo a realidade, as denúncias contra as desigualdades sociais, o amor ao próximo, a fragilidade do caráter humano, ou abraçando a luta dos menos favorecidos, isso leva também ao surgimento de fofocas, invencionices e maledicências. Pelo contrário, são aplaudidos os que fazem “arte oficial”, “chapa branca”, de fácil leitura, a chamada “Estética da Norma”, aqueles que exploram o lado folclórico e o bonitinho, os que, quando obtêm um sucesso comercial, se repetem por anos a fio, fazendo “xerox” do seu próprio trabalho. Não custa nada repetir.

Certa ocasião uma pessoa, formada, bacharel em direito, e que até ocupou cargos no governo, chegou para mim e disse: “Arte é tudo o que eu acho bonito e gosto”. Diante de tamanha mostra de superioridade, eu nada respondi, e de nada adiantaria falar alguma coisa.

Acho que as pessoas não têm obrigação de serem “expert” em arte. Entretanto, podem adquirir sensibilidade através da cultura e da informação. Acho que as pessoas devem ser competentes dentro de suas atividades profissionais, mas se tiverem ou adquirirem sensibilidade para gostar de arte, melhor.

Nesta minha fase iniciada em princípios de 1980, à proporção em que era divulgada através de inúmeras exposições, salões, bienais, reportagens e textos críticos, começaram a evidenciar-se, não por todos, infundados ataques chamando-a de uma arte de agressão e uma arte feia. Quanto à acusação de agressividade na fase antropomórfica onde o tema é o caráter humano, é absolutamente infundada. Eu mostrava o que não se deve fazer. Eu mostrava o mal para ser corrigido. Mas algumas pessoas se espelhavam nos trabalhos e, aí sim, me agrediam. É incrível a facilidade com que, por diversos motivos, algumas pessoas, insensatamente, julgam outras ou o seu trabalho.

Já o crítico José Roberto Teixeira Leite afirma, com muita propriedade, num texto em que demonstra perfeito conhecimento de minha pintura, afirma, entre outras coisas, que a minha pintura daquela fase é “moralista e não agressiva”. Também o crítico Frederico Morais assim termina um dos muitos textos que escreveu sobre o meu trabalho:

Não é que a miséria se desvaneceu, como por milagre, ou que a corrupção dos sentimentos tenha sido extirpada do ser humano. O que Scaldaferri parece ter percebido é que por mais perversa que seja a vida do homem, não importa o grotesco ou o ridículo das situações, existe ainda dignidade e esperança. Esta a lição da pintura atual de Sante Scaldaferri.

Coincidentemente, e não é a primeira vez que divulgo este fato, certa vez Dom Timóteo Anastácio Amoroso, conversando comigo me disse, não exatamente nestas palavras, que o homem pode seu mau, ter um caráter ruim, entretanto todos temos um lado bom. E é por este lado que devemos olhar o próximo.

Quanto ao “feio”, o crítico Aldo Tripodi, na sua dissertação de mestrado sobre o meu trabalho, “Sante Scaldaferri – Uma Poética do Feio”, explica muito bem.

A seguir transcrevo um trabalho de um aluno de Aldo Tripodi, tal a sua seriedade e lucidez.



O “FEIO” É MUITO BONITO, MAS DIFÍCIL DE ENTENDER

A poética do feio

De um homem com fome, nada se pode exigir. A fome desnorteia, avilta, deteriora perspectivas. Sob o rigor desse estado lastimável, eu me encontrava na Faculdade de Filosofia – UFBA em Salvador na década de 90 em estado desumano, vindo do interior.

Lendo Nietzsche e tantos outros filósofos que me deram as primeiras noções sobre estética que me influenciam até hoje como artista plástico autodidata e como o ser humano que eu sou.

Foi da dor de passar fome que surgiu a necessidade de ser inventivo, pois sempre soube que há dores que nos fazem calar, há dores que nos fazem falar e há dores que nos fazem criar. Com essa dor causada pela fome que eu passava, senti a necessidade de criar. E criei o que eu chamo de poético através da feiúra que impregnei com giz de cera de cor preta, rabiscos, rascunhos, esboços com traços fortes e simples. E no papel, rostos de mulheres deformadas que se distanciam da lógica dominante dos padrões de beleza que ainda estão e permanecerão por aí afora estagnados e influenciando com a ferrugem. De suas posturas acríticas.

As questões do ter estilo próprio, de traçar o nosso próprio caminho esculpindo no mundo o nosso próprio jeito de ser são atrofiadas por esses padrões excludentes.

E esses desenhos feitos envelheceram nas gavetas e empoeirados pela passagem do tempo que deixou as suas marcas, por mais de duas décadas. Ficaram esquecidos que nem o próprio Nietzsche e tantos outros filósofos estudados por mim no decorrer de minha vida conseguiram fazer com que eu colocasse esses desenhos em telas tornando uma série de pinturas.

Foi quando surgiu um curso de História da Arte ministrado por Aldo Tripodi, professor da UNEB, crítico de arte e mestre em Teoria e História da Arte EBA/UFBA. Com esse contato surgiu a leitura do texto “A poética do feio” cujo texto remete ao livro de sua autoria “Sante Scaldaferri – Uma Poética do Feio”, onde o autor analisa a obra deste artista que faz um viés pelo tema que o autor destaca que me alargou horizontes relacionados ao meu modo de pensar e sobre o que eu pensava que sabia sobre estética, sobre beleza, sobre o belo, sobre o poético e sobre arte.

Esse texto fez com eu tirasse os tais esquecidos desenhos das empoeiradas gavetas e fizesse uma série intitulada pelo teor do texto do professor Aldo Tripodi. É uma série de 20 pinturas em acrílica sobre tela com 1m x 1,50m com o uso de apenas um só pincel e a predominância da cor negra, sem misturas com outras tintas ou tonalidades. Essa simplicidade técnica toma corpo sobre a superfície branca de toda extensão da tela. São traços simples e vigorosos que dão a deformidade a rostos de mulheres marcadas por não se padrão de beleza vigente.

A partir da degustação poética do texto do professor surgiram questionamentos sobre os padrões de beleza espalhados através da história da própria beleza e seus padrões estabelecidos negligentemente aviltantes por essa globalização perversa que tanto avilta mulheres e homens que se deformam se descaracterizam e se desnorteiam do que há de mais sagrado em sua vida: a sua singularidade.

Em busca de uma perfeição rigorosamente imposta pelos meios de comunicação que abusa da ingenuidade do senso comum no qual se estabelece a grande maioria de mulheres e homens iludidos pela busca do corpo perfeito. Essa busca alucinada por se padronizar tudo: corpo, bunda, caras, bocas e pernas deixam despercebida a beleza da essência de cada ser humano no mundo em que vive. Em detrimento dessa essência humana, a busca pelo ter toma corpo e avança tenazmente sobrepondo-se às questões ontológicas de cada um onde cada caminho é traçado por tais pessoas. Mas as que estão às cegas sobrevivem a esse turbilhão alucinante em busca de solucionar um problema criado para todo aquele que não se encontra ou não quer se encontrar pelos corredores estéreis da força da imposição dos padrões que limitam, anestesiam e engessam a possibilidade de cada um desses seres de se enxergarem como humanos que realmente são com iluminação própria de verdade, de beleza interior.

E iludidas por se tornarem fantoches manipulados pela invenção de um padrão, costuram-se com as mais drásticas posturas em busca dessa aceitação quando, na verdade, o grande incômodo causado por quem não se aceita pela força imposta criação padronizada de como cada ser humano se torna um objeto a preencher ruas, praças e avenidas como rebanhos em busca de uma perfeição que não existe, mas que preenche as lacunas pernósticas do lucro perverso e desumano.

O texto “A poética do feio” do professor Aldo Tripodi que se fez como causa dessa série de pinturas em preto e branco, foi a causa que fez com eu esse instante poético se tornasse eterno em cada pessoa que se questiona diante dessas pinturas com linhas sem rebuscamento técnico, acadêmico e sem nenhum compromisso com os modismos das artes e sem o propósito de querer agradar.

A série de pinturas intituladas “a poética do feio” se faz caracterizada pela teimosia e ousadia inventiva do criar. As pessoas que se tornam coisas ou se deixaram dominar pela lógica e pelas rédeas da alienação se apresentam diante das obras. O não enquadrar-se nos porões dos padrões edificados estonteantemente é o que faz com que sejam taxados de feios. A elite determina o que é beleza, o que é feio, o que é bonito, o que é belo e o que é brega.

A imposição do ser bonito por pertencer a essa lógica imposta deteriora e avilta mulheres e homens que sem reflexão crítica e filosófica mergulham nesse oceano de hipocrisia alicerçado pelo poder midiático que, entre essas e outras imposições, ainda quer que se compreenda a felicidade através do pertencimento obrigatório, desse padronizar-se que engrossa as filas dos rebanhos de mulheres e homens objetos-coisa sem o crivo sagrado do seu jeito de ser singular. E objetos coisificados passam a fazer parte dessa lógica perniciosa e obrigatória, desse padrão de beleza que aí está: sem o poético como fundamento ou alicerce, prevalecendo o jogo subalterno do pertencer ao rebanho pelos corredores sujos, imundos da mediocridade que essa elite pensa, traça e determina.

Raimundo Carvalho – UFBA. É pós-graduado em Educação (FES-UNEB, Serrinha), professor de Arte e Filosofia do CEPCS – Teofilândia e COOPEISE – Serrinha e diretor de arte da ONG Fulô da Caatinga (Teofilândia, BA).

***

Nesse exato momento, interrompo esse relato, pois acabo de receber um e-mail de meu amigo e poeta Bernardo Linhares a reprodução de um trabalho meu de fase mais recente, que não se enquadraria neste texto se não fossem os carinhosos versos que a acompanham. Fica registrado o meu agradecimento.





Devoto da Beleza

Quando o belo

escalda o ferro,

faz do feio, o mais bonito.

Popular é o erudito!



Bjs, BL

O HOMEM E SEU TEMPO: A Bahia de Hansen

"Eis que a Bahia tem esse mistério, essa grandeza sem limites, esse óleo de luar que escorre pelas noites, sobre os homens, ninguém pode a ele resistir.”
Jorge Amado



Fazem oitenta e três anos que Heidegger no seu texto Sein und Zeit ("O ser e o tempo”, 1962), convida cada homem a fazer a seguinte pergunta: o que significa ser para o homem, ou "como é ser"?. Desprovido dessa reflexão, absolutamente necessária, o homem segue uma forma errante de ser sem consciência, sem autenticidade e alienado. Não sendo, inquestionavelmente, o caso desse artista germânico-baiano: Hansen Bahia

O tempo e o lugar construíram o homem Hansen Bahia. Procurando respostas para sua existência de “ser-no-mundo”, deitou-se em um novo berço, aquecido com braços sofridos de negros e mulatos, em uma nova casa: a Bahia, onde renascera e fora adotado como um guerreiro por muitos dos seus contemporâneos. Na nova terra encontrou singularidades de um povo que vive entre o “monstruoso e o sublime”, entre o nobre e ignóbil, entre a sensualidade e a desordem social. Mirou seu olhar para o mundo dos pobres e dos excluídos a fim de transmutar a dor do seu passado de jovem soldado na Alemanha nazista e a dor das nossas mazelas históricas oriundas do holocausto da escravidão.

A Bahia de Hansen nos diz que as chagas abertas pela cruel desigualdade social que constitui a sociedade brasileira devem ser estancadas, mas suas cicatrizes nunca ocultadas. E que a sua arte promove a total visibilidade de espaços e indivíduos descartados, condenados ao esquecimento. A sua obra funciona como uma catarse, um exercício de purgação, um remédio amargo, muitas vezes intragável, contudo purificador.

Gravando sobre a aspereza da madeira a nossa grotesca realidade. Hansen está presente e pertencente ao seu tempo. Materializando suas experiências de vida e se relacionando com o mundo e com as pessoas. Aproxima-nos de dores universais e simultaneamente se crucifica no calvário da sua “Via Crucis do pelourinho” em tempo de medo e miséria na Bahia.

A Bahia de Hansen aborda e investiga temas sempre com um horizonte crítico; são prostitutas, pescadores, vaqueiros,homens e mulheres do povo, e vistos em sua condição existencial. O artista aponta para leituras que desmitificam as imagens hegemônicas da Bahia, e me faz lembrar das palavras de António Risério, citando Stefan Zweig ( um escritor que se matou no Brasil), que nos alerta ao comparar a cidade de Salvador com a atitude de uma velha rainha viúva – “uma rainha viúva, grandiosa como a das peças do Shakespeare” - acrescenta Risério, “uma rainha tão bem sucedida em seus convites a idealizações paradisíacas que geralmente consegue ocultar dos olhos que a contemplam, a realidade de sua miséria e dos seus conflitos sociais.”

Salvaguardar a obra desse grande artista é uma tarefa absolutamente necessária para nossa história, pois além de ser um precioso patrimônio cultural é um exemplo de competência para todas as gerações de como um ser criador, se relaciona de maneira autêntica com o mundo em que habita. Relembrando Jorge amado: o “famoso e indiscutível, Hansen Bahia tudo deixou para trás e partiu conduzindo a cruz de Cristo".

Ayrson Heráclito,
Artista Visual, Curador e Professor da UFRB/CAHL

O MUSEU E SUA FUNÇÃO CULTURAL

O homem está sempre preocupado em preservar sua história e sua
memória, colecionando artefatos. Ele tem acesso ao seu passado através
de relatos ou depoimentos de testemunhas oculares, textos, enfim
documentos. Quando se defronta com a coleção de imagens e objetos,
particularidades da vida social, signos que habitam um museu, caverna
moderna onde o homem urbano fixa nas paredes os enigmas de sua
passagem no tempo ou no mundo. Com isso, não quero dizer que o museu é
um caminho em direção ao passado, ele é um lugar de possíveis diálogos
entre passado, presente e futuro. Olhar o passado é “estabelecer uma
continuidade entre o que aparentemente deixou de ser e o que ainda vai
ser”, (Frederico Morais).

Um abrigo do velho e do novo. Mais do que uma instituição de festas e
inaugurações de exposições, ele tem um papel cultural importante, além
de abrigar os registros do tempo, manifestações culturais de uma
região, país ou de um determinado povo, objetos que testemunham o
trabalho humano, é um veículo a serviço do conhecimento, da educação e
da informação que contribui para o desenvolvimento da sociedade. Os
museus são instituições com tipologias diferentes que guardam acervos,
peças integrantes da memória cultural de uma cidade, de um país. O
ato de colecionar foi uma das ações que estimulou o seu surgimento e a
própria coleção vai educando o olhar, impondo exigências, critérios,
qualidades, exigindo espaços adequados etc. e a necessidade de ser
vista. Vai se constituindo num patrimônio que precisa ser preservado.
Seu destino é o museu.

2006 foi o ano nacional de museus determinado pelo Ministério da
Cultura. Como pensar os museus e sua função cultural nos tempos
difíceis que estamos vivendo? Eles passam por problemas como: falta de
recursos, de profissionais especializados, sem instalações adequadas,
enfim falta uma política pública para os museus que os vejam não como
dispositivos da indústria de entretenimentos. Mas se a própria
universidade, o lugar da produção de conhecimento, vem perdendo a
intimidade com a reflexão e se transformado numa fábrica de
mão-de-obra especializada, o que podemos esperar de uma instituição
museológica, neste contexto? Para um pré-socrático chamado
Parmênides: saber é um discernir, para Sócrates e Platão (alegoria da
caverna), um discernir sobre o que é real e sua sombra projetada na
parede da caverna. Aprendemos com Espinosa que se não há pensamento,
não há liberdade. O homem é escravo do que não conhece. Esquecemos os
gregos, desprezamos a filosofia e o exercício da reflexão e estamos
construindo uma cultura descartável. Não há mais questão cultural em
jogo, mas um jogo de interesses da sociedade do espetáculo e da
indústria cultural.


Desde quando a política e a economia reservaram à cultura um espaço
quase que insignificante, dentro das prioridades da vida urbana,
interesses alheios comprometeram o funcionamento das instituições
culturais. A cidade precisa de tecnologias, partidos políticos,
técnicos, políticos, empresários, especialistas em áreas diversas,
etc., mas acima de tudo, precisa de uma tradição cultural e do
exercício da cidadania, para que ela própria signifique. Um museu
guarda mais do que obras e objetos de valor e de prestígio social, uma
situação, um fragmento da história, portanto um problema cultural.
Tudo que nele é exibido deve ter um compromisso com o conhecimento, a
memória e a reflexão. Sua programação não deveria ser decidida por
patrocinadores que tem como objetivo final vender produtos muitas
vezes até desnecessários, e circular uma imagem de que está
contribuindo para o “desenvolvimento cultural”.


Estas instituições não são fantasmas do mundo civilizado alimentadas
pelo olhar apressado das câmaras fotográficas do turista curioso ou do
olhar atraente e mundano do público das vernissages. Estão a serviço
do pensamento crítico da sociedade e sua história, portanto um
laboratório reservado a estudos, experimentações, integrando
produtores e consumidores de produtos culturais. Vinculadas a um
saber específico, que toda comunidade tem direito ao seu acesso, mas
na prática são espaços restritivos do ponto de vista intelectual,
principalmente em cidades sem uma “tradição cultural museográfica”.


Sua localização geográfica é fundamental no sentido de facilitar o
acesso de estudantes, curiosos, turistas, do público em geral que lida
com as diversas formas de saber. Em cidades como Salvador, um museu
poderia ser um agente de contribuição na revitalização do centro da
cidade, quando ele está próximo dos serviços urbanos oferecidos, como
sistema de transportes coletivos e segurança. Bom para a cidade e bom
para o museu. É preciso inventar soluções compatíveis e possíveis com
os poucos recursos disponíveis, para garantir sua vitalidade.
O que é visitar um museu? O que se busca nele? Um museu é um centro de
informação e reflexão, onde o homem se reencontra com as possíveis
invenções da estética, a história e a memória. Seu conceito foi
ampliado e renovado nos fins do século XVIII, com o advento da
revolução francesa. Mas sem um projeto cultural que valorize seu
próprio acervo e o que nele é exposto, sem deixar que eles se
transformem em suportes para marcas publicitárias, o museu é apenas um
lugar que atrai olhares dispersos, sem interesses culturais.


Sem recursos financeiros e depois que a responsabilidade cultural foi
transferida para a iniciativa privada, que tem como principal critério
de seus patrocínios o impacto na mídia, muitos museus vêm se
transformando em instituições de entretenimento para atrair grandes
públicos consumidores de subprodutos culturais, quem sabe também
futuros consumidores das marcas que patrocinam os seus eventos.


Os museus, em particular os de arte, ultrapassaram a simples função de
guardar e preservar bens culturais e assumiram várias tarefas e outras
funções como o ensino livre da arte, foram equipados com bibliotecas,
auditórios para debates, conferências, cinemateca. Umas das principais
vanguardas brasileiras na arte, o Neo-Concretismo surgiu praticamente
no curso do prof. Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro. As oficinas de arte Museu de Arte Moderna da Bahia vêm
prestando um trabalho social e educativo na formação de artistas e
público. A prática museológica tende a se ampliar e integrar o
desenvolvimento urbano, seu objeto de estudo diz respeito também à
paisagem urbana, ruas, praças, quarteirões. “Museu é o mundo; é a
experiência cotidiana...”, (Hélio Oiticica). As cidades,
principalmente as cidades históricas são espaços museográficos.

Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Oiticica - Julho de 1979 – Um Breve Depoimento

Festival de Inverno da Universidade católica do Recife, julho de 1979.

Entre os convidados, Hélio Oiticica para realizar experiências com “parangolé” e fazer uma rápida retrospectiva de sua obra através de slides. Eu estava no festival realizando uma pequena exposição que tinha um pé na arte conceitual e outro na arte construtiva, com o título “Manias de Narciso”, que muito impressionou o Oiticica. Conversamos muito sobre arte, a partir daí.



No seu trabalho com “parangolé”, queria um público da periferia, marginal, livre de influências culturais acadêmicas, já que via na marginalidade uma idéia de liberdade. Sem dúvida, era um inventor que mantinha certo domínio intelectual sobre seu próprio trabalho. Sabia o que queria e não queria fazer qualquer coisa. Uma noite circulamos pela periferia da cidade do Recife, na busca de uma escola de samba, Oiticica, Paulo Bruscky, Jomard Muniz de Brito e Almandrade. Uma aventura, papos e papos pela madrugada a dentro, de bar em bar nos arredores da cidade. A vida e a arte, os agitados anos de 1960, a mangueira, a tropicália, Londres, Nova York etc. A arte era, para ele, uma experiência quase cotidiana contra toda e qualquer forma de opressão: social, intelectual, estética e política. Na projeção de slides na Universidade Católica, as ilustrações dos papos da madrugada anterior, as imagens de uma obra que a arte jamais se livrará. Arte concreta, neo-concreta, penetráveis, ambientes coloridos, bólides, arte ambiental, tropicália etc.



No princípio era Mondrian, Malevith, depois Duchamp. Uma trajetória exemplar na arte brasileira. Uma tensão entre fazer arte e habitar o mundo. Foi assim, uma das últimas performances do Hélio. Quase oito meses depois, misturado com suas obras na solidão de um apartamento/ninho/penetrável, agonizou por três dias vítima de um derrame cerebral. Ficou a lembrança de uma brilhante e discreta presença num festival de inverno em pleno calor do nordeste brasileiro.





Almandrade

(artista plástico, poeta e arquiteto)



Suplemento Literário, Belo Horizonte, novembro de 1997

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

AYRSON HERÁCLITO: O PINTOR E A PAISAGEM Beto Heráclito Mestre em História UFBa Doutorando em História social USP Professor de História da Bahia UEFS

Ayrson Heráclito me disse certa vez que o suporte nas artes plásticas não existe. “O que existe são estratégias que materializam as energias criativas da cultura”. Informado por esse conceito é que comecei a pensar essa sua fase de investigação dos materiais orgânicos. Açúcar, carne, dendê, portanto, são estratégias (políticas, eu acrescento porque culturais) quando transfiguradas em arte. Ayrson Heráclito, então, além de um pintor é um militante da criação, da investigação sensória daquilo que nos marcou a ferro e fogo. São das dores, das nossas feridas que a sua obra nos fala. Dor brasileira. Dor baiana. Dor sem nenhuma autonomia, dor colada ao mundo como a arte sempre o foi. Dor historicizada, destronada de toda possibilidade universalizante. Dor sem o risco do estético. A dor da pintura e dos seus incômodos.
Informado pela cultura que o fez compreender sujeito, compreendo Ayrson Heráclito como um barroco. Barroco não no sentido estilístico, como compreendido pela História da Arte, mas como “substância básica de toda uma nova síntese cultural”: a sociedade brasileira. Exaltações, contradições, ilusões de grandeza, êxtase festivo, exuberância, monumentalidade, desespero, horror à miséria1, enfim todos os elementos do nosso barroquismo são apresentados por Ayrson ao longo dessa sua empreitada com os materiais eleitos pelas suas estratégias criativas. Materiais emprenhados de sentidos históricos que por si só nos exige a experiência, nem sempre fácil, da desconstrução.
Na “fase açúcar” nada de doce foi contado. O que chama a atenção do artista é a crise do antigo sistema colonial português, momento que, para ele, os “segredos internos” da identidade cultural brasileira passam a se revelar. Toda essa cênica dos sentidos onde nos reconhecemos brasileiros foi problematizada nas obras, através de evocações do efêmero, do díspare, do sentir-se estrangeiro em seu próprio país. Isso é facilmente aferível na utilização de materiais pouco nobres, como o enxofre, os coleópteros (popularmente rola-bostas), óleo de cravo, rapadura, mel e mica. A instalação “Segredos Internos” (1992)2 sintetiza bem esse momento. A obra apresenta um barco partido ao meio em clara alusão ao Antigo Sistema Colonial e o avanço capitalista que irá destruí-lo. Não é à toa que o poeta barroco Gregório de Mattos é chamado para ajudá-lo nessa empreitada. Gregório não só registrou em seus poemas esse momento como o viveu com intensidade trágica. Desmontando falsas acomodações e ideologias, o passado é posto num movimento autofágico que, renovado pela experiência do artista se constitui num “entre-lugar contingente, que inova e interrompe a atuação no presente”.3
Se com o açúcar Ayrson Heráclito ainda busca o recurso da alegoria amparada na poética de Gregório de Mattos, a utilização da carne sinaliza para questões que não podem ser tratadas utilizando apenas o recurso da representação. A carne utilizada é uma carne culturalmente informada pela população do nordeste brasileiro: a carne de charque. Ela, por si, nos diz sobre a comida, isto é, o alimento significado por aqueles que o transformam em hábito alimentar. O hábito do consumo da carne de charque, por seu turno, remete a temáticas próprias do nosso universo cultural como a seca, a fome, a comida pouca. A carne desidratada e salgada que não apodrece facilmente, que pode ser parcimoniosamente utilizada pelas populações pobres do nordeste brasileiro. Sua utilização pelo artista é inusitada: ele a transforma em roupas, produzindo uma coleção completa de trajes e adereços masculinos e femininos que são apresentados num circuito de moda, conhecido como Barra Faschion (2000). A inspiração na Werable Art é apenas aparente (ou referente). O que o artista busca é colocar a dicotomia necessidade x supérfulo, glamour x miséria, ao tempo que convoca o espectador para refletir sobre os limites do vestível, as possibilidades da moda e a sua relação com o contexto social na qual se insere.
Fazendo parte de um amplo projeto de intervenção, teoricamente embasado no conceito de escultura social do Joseph Beyus, outras ações se incorporam ao “projeto carne”4. A performance “A Transmutação da Carne”, apresentada no Instituto Cultural Brasil Alemanha (2000), por exemplo, quer discutir a violência contra o corpo. Utilizando-se de registros de torturas sofridas por escravos no Brasil, relatos de suplícios analisados por Michel Foucault quando estudou a História dos sistemas punitivos no Ocidente, o público mais uma vez é convocado, parafraseando Beyus, a olhar a sua própria ferida. Uma ferida que pode ser estetizada, transmutada, mas nunca esquecida. E a dor do corpo escravo, marcado a ferro e brasa pelos seus senhores, encontra ressonância na miséria nordestina: fome e tortura são apresentadas, na ação, num churrasco humano como a nos dizer do lugar do homem dentro da gramática de desigualdade que constitui a sociedade brasileira.
Cerca de 800 quilos de carne foram utilizados nas intervenções, que também contou com o um desfile público dos modelos pela zona central da cidade de Salvador (Praça da Piedade e Avenida Sete), onde os transeuntes eram inquiridos sobre vestir ou não vestir uma roupa de carne. Mas o momento crucial da obra era devolver ao material o seu significado original de comida. Comida apreciada na feitura de pratos popularmente cultuados como a feijoada. É interessante salientar que o desdobramento e a dinâmica da miséria nordestina muitas vezes afasta pratos populares do seu consumidor de origem. Hoje nem mesmo a carne de charque, outrora alimento dos mais pobres, pode chegar a mesa de muitos lares (quando existem) nordestinos. Fruto de uma lógica perversa de aprofundamento da miséria, sempre construímos, no Brasil, infinitas possibilidades de mais pobres.
Tentando dar visibilidade a fome no nordeste como um problema social, a carne é distribuída a comunidades carentes e associações filantrópicas, no intuito de denúncia. Os recibos e as cartas de agradecimento das referidas instituições enviados ao artista são transformados em obra de arte: Os documentos-obra. A obra de arte agora, nesse gesto, está pronta. Volta a cumprir o seu desejo original de humanizar o mundo.
No processo de investigação dos materiais orgânicos, Ayrson Heráclito apresenta publicamente, pela primeira vez, a sua experiência com o azeite de dendê na Bienal do Recôncavo. O trabalho chamava-se “Kiry, Beuys, Salvador”. Utilizando-se de carne de charque, azeite de dendê e estampas populares de santos (12 imagens repetidas do Sagrado Coração de Jesus), o artista tenta atualizar referências cristãs levando em conta o universo místico baiano, ao tempo que atribui a cada uma das imagens a autoria de diversos fenômenos sociais contemporâneos. “Criador dos direitos autorais”, “Inventor do HIV”, “Inventor da cola do sapateiro”, etc. Nesta experiência o azeite de dendê é explorado nos seus aspectos físicos (densidade, cor, volume) bem como nos seus aspectos simbólicos, visto a sua importância ritual para as religiões afro-baianas. Kiry faz alusão as dores humanas universais e ao desejo de sagrado que elas evocam, porém ele é ressignificado pelo catolicismo popular baiano na figura do Sagrado Coração de Jesus que também é Oxalá, um deus negro. É exatamente aqui que podemos compreender a opção por Joseph Beyus como inspiração teórica. A experiência de ressignificação em Beuys é arbitrária. Ele transforma ícones da cultura em fetiches estéticos. Para Heráclito isso aproxima o fazer artístico das dinâmicas e sincretizações da cultura baiana. Daí o afastamento, como solução teórica, da imagem dos signos ordenados, dos signos dentro da paisagem urbana tão a gosto da pop art e, mais especificamente, Andy Warhol. A arbitrariedade,a contradição, a falta de lógicas ordenadoras e planos discursivos coerentes, constantes na cultura baiana aproxima-a, no plano das artes plásticas, segundo Heráclito, do ultra-romantismo, do expressionismo, funda-a nos planos do barroco. E é por esse espelhamento com a cultura que o artista define os rumos do seu fazer artístico.
Movido por essas convicções, o azeite de dendê passa a ocupar um lugar central no seu processo investigativo. A polivalência de seus usos, a ubiquidade da sua presença nas regiões baianas diretamente envolvidas com a escravidão e tráfico negreiro, empresta sentidos múltiplos e densos ao material e é apropriado pelo artista como matéria-prima central para se pensar o ethos baiano. A importãncia atribuída ao óleo de palma pelas religiões afro-baianas – o “sangue vegetal que é oferecido às divindades em uma grande parte de seus rituais -, emprenha-o de sentidos abrangentes e múltiplos. As distintas dramaturgias sociais, as paisasgens, suas estéticas e contra-estéticas (convenções de gosto), as reverberações rituais associadas ao passao redivivo do mundo dos senhores e escravos, são postas em movimento quando focamos a redenção do azeite de dendê na sociedade baiana, que o elegeu, contemporaneamente, como representante oficial da sua gastronomia.
Neste momento, também, o artista busca refletir/iconografar uma outra questão diretamente associada ao material, a saber: como pensar os negros americanos na realidade pós-colonial? Como se constitui, na pós-modernidade, as formas de interferência política dos negros, suas diferente ações afirmativas, suas distintas gramaticas interativas, suas ecologias de pertencimento?
Os primeiros resultados desse processo pôde ser apreciado na “Bomba de Azeite”, apresentada na Mostra dos Artistas Baianos, promovida pelo Museu de Arte Contemporânea/Universidade de São Paulo (USP), (1995), na obra “Divisor” (Bienal do Merco-Sul - 2001) e na exposição “Ecologia de Pertencimento” (2002). Constante de três obras, esta intervenção elege o oceano Atântico como o centro de reflexão das questões propostas. E não à toa. Inspirado pelo sociólogo Paul Gilroy (o conceito ecologia de pertencimento é desse autor), Ayrson também acredita ser o atlântico o útero gestor da categoria racial negro. São nos navios negreiros, direta ou indiretamente envolvidos com a escravidão moderna, que essa forma de pertença entre sujeitos de fenótipos raciais parecidos se funda. Haveria negros, no sentido político do termo, se não houvesse escravidão e as políticas de racialização que ela engendrou?
As dinâmicas culturais específicas das diferentes experiências dos negros na América, as distintas políticas interativas foram emblematizadas, no caso baiano, pelo azeite de dendê. Na obra O Atlântico Negro – Divisor (220x050x015), um grande aquário de vidro é preenchido por uma mistura de água, sal e azeite de dendê. A heterogeneidade comum à solução de água e óleo ajuda a contar sobre o caráter díspare dessa experiência. Numa inversão arbitrária de sentidos o azeite negro está por cima da água salgada (o mar) que o subjugou cativo nos tempos do tráfico escravo.
Na obra “Regresso a pintura baiana”, um painel monumental (900x280x140) pintado com azeite de dendê utilizando-se da técnica dripping -, o artista busca explorar as potencialidades do óleo enquanto tinta. Sua luminosidade, textura, gradiência; os efeitos arbitrários conseguidos com o uso são largamente explorados. A cor, o cheiro, a exuberância da obra incomoda. Nos remete a zonas ancestrais do nosso inconsciente, ao tempo que parece perguntar, dramaticamente, sobre a inserção dos negros na sociedade baiana.
Na obra “Moqueca – O Condor do atlântico”, uma grande peixe (arraia jamanta, com 120 kg) foi exposto na abertura da mostra, depois tratado por um peixeiro e apresentado em perfomance no dia posterior, com a feitura pública de uma moqueca pelo artista e a sua equipe. A arraia, na Bahia, é conhecida como um peixe de pouco valor (peixe de segunda) e é largamente utilizada pelas populações afro-descendentes para a confecção desse prato típico: a moqueca. O título da exposição, por outro lado, faz referência direta ao poeta abolicionista baiano Castro Alves que associou os condores aos anseios de liberdade dos negros. A arraia também lembra um pássaro, que sem está no ar e sim no mar, transfigurou a experiência escrava em exercício de invenção de liberdade. Certamente que a moqueca é um exemplar gastronômico do legado artístico dos negros à experiência americana.
Por fim, resta-me confessar que a experiência de acompanhar o artista Ayrson Heráclito nesses experimentos com os materiais orgânicos, me fez refletir sobre as possibilidades da linguagem plástica se tomarmos como ponto de vista o lugar de sua inserção. No caso dessa fase de trabalhos confeccionados com materiais orgânicos, o açúcar, a carne de charque, o dendê), para além do seus usos, sua condição objetal de suporte expressivo -, acionam por si só signos que ampliam a nossa compreensão do mundo do qual fazemos parte. Utilizá-los em arte é garantir a expansão das suas significações, é buscá-los enquanto experiência fundante de processos sociais mais amplos, questionando suas políticas. No caso do dendê, por exemplo, a sua utlização como matéria-prima e expressiva de todo o processo criativo tenta dar conta das nossas mitologias de origem, as suas transfigurações rituais, estéticas, corporais, gastronômicas, etc. Pensar o dendê como emblema das políticas de identidade e as suas dinâmicas, na constituição de comunidades mais substantivamente democráticas do que a raça.
Assim como a fluidez atlântica, o dendê também evoca mistura, movimento, texturas, memórias. Sagrado e profano, distante e próximo, combustível e cosmético, branco e preto, pobre e rico se acordam sob novas lógicas na cartografia de utilização do óleo de palma. Atento a tudo isso está o pintor Ayrson Heráclito, modelando e descobrindo a sua paisagem. Dizendo-se dentro da paisagem e ao mesmo tempo autor da sua condição arbitrária, o artista busca ampliar os sentidos dessa experiência, dinamizando possibilidades e pontos-de-vista.