Este Blog tem por função abrir reflexões e visibilizar o que se produz de arte contemporânea na Bahia. Sua estratégia principal é criar interlocuções entre artistas, críticos, curadores, poetas e pensadores da cultura de variados eixos de interesses. Este espaço será depositário de variadas formas de pensamentos que ajudem na compreensão dos processos contemporâneos que formam o perfil das ações culturais baianas e suas significações dentro do panorama brasileiro. Vauluizo Bezerra

sábado, 29 de outubro de 2011


ENEIDA SANCHES
TRANSE: DESLOCAMENTO DE DIMENSÕES


Vauluizo Bezerra
                                                                                                                                                                                   “Este apetite do olho, que deve ser alimentado, constitui o valor de encanto da pintura. Este valor é, para nós a ser procurado (...) naquilo que é a verdadeira função do órgão do olho, o olho cheio de voracidade, que é o mal olhado.” Jacques Lacan (1)
     
                                                                                
A imagem de uma mulher em posição de mergulho, congelada no espaço, a ânsia da queda, permanência no vácuo, ou iminência de choque sobre a rocha que não aparece, mas é sugerida sutilmente pela fala da artista como uma possibilidade de amplos significados, sugerem desde uma condição literal, a situações de escopo simbólico pelas bordas da cultura, e pela projeção pessoal e psicológica como notação de contextos que se tornam um produto da cultura quando urdido pela arte. Corpos desmembrados expostos em sua clara condição de escultura gerida pela polaridade dos tons da parafina e a cor do chocolate como contraponto.  A presença de impressões de imagens num contexto de quase ausência, oriundas de matrizes para gravura em metal sobre a fosca invisibilidade da parafina e as variáveis simbólicas contidas no chocolate.  O que são estes corpos? Que significam estas imagens que se furtam à compreensão fácil? Porque nos intrigam mesmo sendo códigos estranhos e ainda assim insistimos em desvendá-las? Que gravidade as reúne e, que celebração nos convida à sua apreciação? Estas são perguntas sem respostas, paráfrase da música de Charles Yves que ilustram bem estes trabalhos de Eneida Sanches e podem ser entendidas como respostas sem perguntas, estendidas a toda arte contemporânea como questões comuns a serem elucidadas a partir do drama sobre a inteligibilidade da arte de Eneida Sanches e da arte de hoje.
Mas aqui reunimos alguns aspectos que argumentam sobre um sentido, ou alguns dos códigos ao qual esta instalação, como toda a obra da artista, se subordina às leis que lhe faz existir, às estratégias de suas operações enredadas no sentido das especificidades da cultura e seus laços sociais, suas imanências históricas, as formas como ordena seu trabalho como instrumento mediador de sua subjetividade pessoal e a busca incessante de uma compreensão do lugar cultural que pertence. Lida assim, com as noções de Diferença, ou o conceito do Outro; lança mão de manifestos estranhamentos. Os deslocamentos que provoca são sua forma de rispidez deliberada com o mundo e seu caráter ordenador, constrói assim reações como poética combativa, centra seu interesse contra a passividade do olhar e o acanhamento do pensar. Vejo, portanto, uma artista inscrita na idéia de multiculturalismo, a elucidar confrontações na ordem político - social do mundo, pelo que transcreve de específico a seu meio e, pelo que arremata nas inevitáveis superestruturas eivadas pela globalização à qual a cultura sempre é envolvida pelos traços de dominação e subseqüentes espasmos reativos a promover nos tempos de hoje - com suas frenéticas mudanças - reações imediatas de choques sucessivos tornando o tempo febril pela sua dinâmica acelerada.
A trajetória de Eneida Sanches sempre esteve ligada aos problemas do lugar cultural que envolve sua ascendência como pessoa.  Predicado e sujeito que norteiam sua subjetividade como artista e mulher num meio cultural de aguda complexidade. Artista que estende uma espacialidade aberta nos anos 40 pelo Modernismo no que diz respeito às contradições embutidas nas relações culturais egressas do colonialismo português, abrindo um País cuja função econômica se dava pela exploração extrativista em conjunção com o comercio de humanos. Sua formação social se cumpre na tensão entre dominantes e dominados, o entrecruzamento de relações que constroem uma nação pela mistura indiscriminada, calcados nos interesses de variados afetos, e discriminados em ordenações  específicas de valor em sua organização social perversa.
Assim é que a primeira das características que norteia a obra de Eneida Sanches resume uma escolha emblemática, a escolha do conceito de Transe que corrobora muitos sentidos, justifica variadas funções no corpo de seu trabalho como notação correspondente às suas observações no meio que lhe circunda, e em outras geografias que estendem sua instituição como artista universal na ordem contemporânea. O Transe é um conceito encontrado dentro da especificidade da religião afro-baiana, mas se dilata ao encontro do mesmo conceito em diferentes circunstancias de culturas e tempos que usam o mesmo atributo, com suas variadas aplicabilidades centradas na função do deslocamento dos sentidos, considerando que esta é uma ferramenta de distanciamento que provoca um assentamento, acomodação de entendimento com o mundo interior: este é um método que perscruta  a indução da consciência para estados alterados,  como uma abertura para o inconsciente vicejando um desmembramento da ordem civilizatória e seus meios repressores - daí sua associação pela cultura ocidental em sua matriz iluminista que concentrou todo o ideário modernista progressista – com as culturas classificadas pejorativamente como primitivistas, fora, portanto, dos quadrantes da civilizaçao na compreensão mistificadora da cultura ocidental.
O Transe, portanto, é um recurso que pertence à categoria da diferença, de não pertencimento ao conjunto do universo dito civilizado, pertence ao status dos excluídos da ordem européia na acepção moderna, e, incluídos, na acepção das minorias que regem o espaço pós-moderno ainda confusamente mapeado pelo pensamento fragmentário, em certa medida vitimado pela impossibilidade do discurso crítico em se adaptar às condições refratárias da produção contemporânea. Justificaria isso, a presença do Curador como principal agente na cena das artes visuais, operando um tipo de organização mais associativa que analítica (função da crítica) a reunir emissões de artistas cujos códigos personalizados parecem ocupar uma representação secundária em detrimento do pendor da espetacularidade?
Na obra de Eneida Sanches o Transe se torna um elemento estruturante, partindo do uso específico nos rituais do candomblé, este, incluído como fator cultural importante pelos modernistas baianos e - liberado judicialmente de seus impedimentos de exercícios somente nos anos 80 - subsidia sua obra como elemento poético, usando os significados que permeiam os rituais em seus usos prático-funcionais.
O único olhar que existe é o mal olhado, assim me parece ter se referido Lacan no Seminário 11 (2) - a propósito da importância do olhar e seus significados simbólicos múltiplos. A escolha do Olho de Boi como signo na obra de Eneida Sanches é um importante elo com o simbólico agregado às especificidades afro-baianas, como também à importância ligada ao seu próprio instrumento de trabalho e suas implicações com a história da cultura que é impensável sua presença sem a incidência das construções das imagens. Um repertório iconográfico oriundo do universo da religião afro-baiana incide como uma fonte autônoma de sua base temática centrada nesse purismo original. Todas as argumentações presentes em seu trabalho que personifica seus perfis como obra de escopo radicalmente contemporâneo deriva das formas como a artista negocia as soluções e materiais envolvidos na articulação de suas formas expositivas.
Antes, é preciso situar o mais importante detalhe que funciona como alicerce fundamental na construção formal e conceitual de sua obra: todo seu trabalho se origina na gravura em metal, uma particularidade que assinala qualidades conciliatórias considerando tratar-se de uma artista cujo território de ações se estabelece na nomenclatura multicultural, região onde se deflagra atritos que buscam acomodar adequações conceituais mais plausíveis ou convincentes com os fluxos que permeiam as idéias ora em curso nos embates de variadas conceituações. Aliado a isto, há que se notar nesta escolha pela gravura, uma mídia tradicional, histórica em sua existência secular, mas que direciona para os sensos de reprodutibilidade da obra de arte, abrindo caminhos para uma politização relativa na produção destas imagens pelas suas disposições em democratizar o acesso de posse a mais pessoas, além do controle do artista gravador sobre todas as instancias da produtividade e circulação da obra. Mas como caráter que incide sobre uma possível abertura simbólica existe uma qualidade que só ao gravador confere e, a isto se refere Paulo Sergio Duarte (3): “(...) o que mais me atraia parecia tão natural para os artistas que sobre isto não se falava ou passava despercebido: era o que havia de comum a todo gravador quando realizava uma gravura. E o comum era essa formidável capacidade de conceber o mundo ao contrário para que possamos recebê-lo gravado na ordem correta. Quando poderíamos falar sobre óptica, psicanálise, teoria dos espelhos e a gravura?”
Mas em Eneida Sanches há ainda uma sobreposição nessa forma de expressão ao contrário pela gravura: a sua obra subverte a função da gravura e sua reprodutibilidade. Serve-se de sua condição reprodutível para outra função típica da arte contemporânea, as disposições cumulativas. Suas tiragens não são numeradas, perdendo-se, portanto, sua função de limite, pois seu limite se subordina às necessidades de cumprir as espacialidades tridimensionais que a artista articula mediante estruturas de ferro que serão portadoras destas tiragens. Cumpre-se assim um baralhamento dos limites funcionais de cada mídia, gravura se fazendo escultura, que por sua vez modula por agenciamentos de cálculos, ou ocorrências de acasos aceitos, a presença da luz como elemento gráfico-escultórico. A todos estes parâmetros um objetivo: o TRANSE por obtenção ótica, a serviço de um simulacro extensivo ao sensorial experimentado em situações de deslocamentos dos sentidos observados nos rituais do candomblé, e outros exemplos citados pela artista quando situa suas influencias, seus parâmetros mitológicos: “(...) A proposta do Transe é possibilitar ao expectador a transposição dos limites da percepção formal, de maneira a criar novas perspectivas visuais e a possibilitar, assim, experiências limítrofes entre o real e o supra-real. (...) Contudo, o conceito de transe já não mais engloba apenas o universo religioso; trata-se principalmente do transe do fazer artístico – o transe de Glauber Rocha e de sua Terra, de Walter Benjamin nos estudos sobre estados alterados, de Miles Davis e Clementina de Jesus.” (4)
Em suas esculturas anteriores, que ainda contaminam a presente instalação, outras ordens funcionais são presença para explorações que estão contidas em sua origem da matriz afro-baiana e se expandem às intenções deliberadamente exploratórias que costuram bordas inaugurais e a inscrevem no laboratório experimental regido por acepções de ordem coletiva agregadas a projeções de sua ordem pessoal, de sua identificação política mediada pela especificidade de suas leituras críticas do mundo. Assim percebemos a construção de artefatos egressos dos rituais afro-baianos  entoados sob uma poética que o distinguem das funcionalidades de origem: roupas,espartilhos,  sapatos, todo um sortimento indumentário abrindo possibilidades parta o vazio ali contidos,  como  a convidar entidades que corroboram a inteireza do transe, a ocupação do outro na espacialidade do si mesmo, essa permissividade tácita, função do “cavalo” que recebe a entidade,e ao tempo que tal construção funcional do rito serve de simulacro para endereços que se direcionam para os movimentos de nossa sociedade atual e suas valorações das minorias em gestos inclusivos.
Como conclusão destas observações sobre esta artista baiana emblemática pela sua coragem em fazer um tipo de arte cuja fruição ainda sofre das decorrências de um circuito de arte deficiente sem as circulações de informações e um aparelhamento mais eficiente para ancorar seus discursos. Além disso, sua preocupação em estender uma compreensão do que chamo de evolucionismo africano, pertinente à diáspora e suas diferentes Áfricas espalhadas pelo mundo, como a própria África Continental e seus múltiplos africanismos, sintoma desta afirmação é prova na sua participação numa exposição em Nova York, ARTIFICIAL AFRIKA.
Ressaltar nos conteúdos de seu trabalho que “(...) aquilo que se situa na pós-modernidade não se destina a reduzir narcisicamente a diversidade dos discursos, nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas repartir as diversidades em figuras diferentes e descrever os diferentes espaços divergentes. Trabalhar com a polissemia nada mais é de modo excludente. Campo de articulação entre os vários, articula representações em regiões e contextos diversos, uma prática relacional.” (5)
A propósito do que se reporta a autora e psicanalista Jacinta Ferraz, o espaço da arte hoje, é um campo aberto a francas possibilidades polissêmicas, assim, numa obra como esta é uma aventura onde se acrescenta e se exclui coisas e conteúdos na busca da depuração, ou instauração de novas ordens discursivas. A este respeito, as “práticas relacionais” referidas norteiam este trabalho que se expande entre bordas, se constrói por uma natureza fragmentária pelas suas justaposições de técnicas e mídias onde se estruturam como unidades fractais, ao tempo que se abre para macro expansões. Uma importante superfície em parafina gravada apontava um incomodo silencio que parecia solicitar imagens em movimento e, para isto, Eneida Sanches convida o fotografo e vídeo- maker nova-iorquino Tracy Collins.
Collins aponta seu olhar/lentes sobre o deslocamento numa perspectiva de trajeto horizontal; imprime seu tempo no que extrai dentro de um trem, absorve o ritmo de sua condução como um tempo dentro do tempo, apreende a presença da paisagem do campo em movimento assim como as ocorrências das cenas urbanas nas estações de trem. Capta os movimentos dos transeuntes que se misturam às imagens captadas pelas câmeras das estações metro-ferroviárias. Um criativo jogo de virtualidades promovido pela ativa percepção do artista pelo que oferece o acaso. Edita estes trajetos e acontecimentos dividindo a tela em quatro partes, fornecendo ao olhar do expectador uma experiência simultânea de movimentos horizontais e distintas profundidades, polarizações entre o campo e o urbano a partir da mesma posição, como a sublinhar a relatividade do nosso olhar e as superfícies de onde vivemos, tomando o deslocamento como forma de mensurar estas distinções. .
Num segundo vídeo, que compartilha lateralmente à mulher em queda, Tracy Collins associa a emblemática iconografia de Eneida Sanches, as cenas dos vídeos acima descritos com sua representação comprimida, achatadas em suas horizontalidades e as projetando no sentido vertical, criando uma sensação ou idéia de cenas liquefeitas, como uma cachoeira, adensando a sensação de vertigem. São imagens que subvertem as estabilidades de suas normalidades, de suas condições prosaicas e se dirigem para um compartilhamento, para visualidades e sensos conceituais distintos ligados apenas por um elo, os deslocamentos, o transe provocado pela velocidade que os deslocamentos provocam, além dos resultados surpreendentes promovidos pela inter-relação das diferenças entre dois artistas que comungam o jogo tácito compartilhado nas superfícies de diferentes culturas.
Eis então uma artista que estende em seu próprio meio a matriz de reconhecimento identitário com uma liga poética contundente e uma consciência nítida em seu desejo de reconhecer-se em si mesma e, estender suas conquistas de autoconsciência na ampliação dos limites e funções da arte de hoje, contaminando-se de novos pensamentos que modulam novas formas de olhar, novos parâmetros relacionais, a partir das especificidades de sua própria cultura, de seus transes, sua consciência restaurada e ampliada para novos encaminhamentos de como ver e falar de si e do mundo.
1)       Lacan, Jacques. O Seminário. Livro 11, página 112. Zahar Editora
2)      Idem, página 112
3)      Paulo Sergio Duarte. A Trilha da Trama e Outros Textos Sobre Arte. (As Técnicas de Reprodução e a Idéia de Progresso em Arte), página 201. Organizadora: Luiza Duarte. FUNARTE - RJ
4)      Entrevista com Eneida Sanches. In Catálogo 14. Salão da Bahia. Museu de Arte Moderna da Bahia - MAM. BA.
5)      Jacinta Ferraz. Letra Freudiana.  Psicanalista e produtora de textos reflexivos sobre psicanálise, cultura e arte. O Impacto da Diferença. Salvador,2010.